O Criador


Mossoró, interior do Rio Grande do Norte. Em uma quente madrugada, pisando com decisão os paralelepípedos antigos, um homem que beira os 80 anos caminha insone. O velho senhor acima do peso, com cabelos brancos rareados, veste uma camisa de botão, um par de bermudas e usa óculos. Os olhos cansados revelam que esteve trabalhando até tarde. Aproxima-se de uma pequena casa e procura a campainha. Uma hora da manhã. Ele toca. Espera. Toca. Espera. Insiste e toca mais uma vez, até que alguém aparece. “Mas o que é, a essa hora?”, a voz sonolenta e raivosa responde. “O senhor prometeu que o livro estaria pronto, eu vim pegar”, diz o velho cavalheiro, com uma educação e uma paciência de causar inveja a um lorde inglês. O dono da casa, sem jeito, mal acredita no que está acontecendo. “A gráfica já fechou há horas!” – protesta. O velho não perde as esperanças. “Antes de ontem, o senhor me disse que o livro estaria pronto na manhã de hoje. Passei aqui e me disse que à tarde o entregaria. Tornei a voltar e me pediu que eu só voltasse à 1 hora da manhã. Pois bem, é 1 da manhã. Aqui estou.”


O velho se chama Jerônimo Vingt-un Rosado Maia, legítimo numerado, filho do patriarca Jerônimo Rosado e de Isaura Rosado Maia. Nasceu em 25 de setembro de 1920, na rua 30 de Setembro, em Mossoró, a 300 quilômetros de Natal. Desde cedo, guarda uma característica comum entre os homens de sua família: a persistência. Tudo o que quer, ele luta para conseguir. Foi assim que passou de casa em casa, através das ruas de Mossoró, pedindo livros para a biblioteca municipal. Foi com a mesma perseverança que obrigou seu irmão Vingt Rosado, então prefeito da cidade, a convidar o célebre historiador Luís da Câmara Cascudo para organizar e escrever a primeira história oficial da cidade. Foi com grande teimosia, e carregando nas costas imensos sacos de areia para o trabalho ir mais rápido, que ele fundou, no fim dos anos 1960, a Escola de Agronomia de Mossoró (Esam), de que foi, por duas vezes, diretor. Graças à “livrofilia”, doença de que padeceu desde cedo, tornou-se um incansável editor de livros. Bastava saber que alguém queria publicar algo, lá estava ele, às ordens. Mesmo se o autor não tivesse dinheiro. Mesmo se fosse um escritor jovem e desconhecido. Mesmo se o tema do livro fosse um cavalo. O mal da “livrofilia” o transformou no criador da maior editora não comercial do país: a Coleção Mossoroense.


Caçula de uma família que domina a política de Mossoró, Vingt-un sempre foi um homem público das letras. Foi um político, sim, ocupou cargos como a presidência do Instituto do Sal (Inda) ou a diretoria da Esam. Foi como político, também, que travou muitas batalhas em prol da cultura e da economia mossoroense. A política partidária não era o seu forte. Limitava-se, em geral, a atuar nas campanhas políticas dos irmãos e a funcionar como conciliador nas brigas familiares. Em troca, sempre recebia apoio político para os seus planos. Por uma única vez, foi candidato a prefeito pela UDN, partido do irmão Vingt Rosado. Perdeu as eleições para Antônio Rodrigues de Carvalho, candidato do MDB, apoiado por Aluízio Alves – o maior fenômeno político do Rio Grande do Norte –, por apenas 96 votos.


Os sintomas da paixão pelos livros surgiram cedo. Aos 13 anos, Vingt-un foi eleito bibliotecário da Biblioteca Estevão Dantas, do colégio Santa Luzia. Três anos depois, ao ouvir uma conferência de Câmara Cascudo, que visitava Mossoró, a paixão se tornou uma obsessão. Poucos anos depois, publicou o primeiro dos 511 títulos que viria a lançar. Reprovado, por três vezes consecutivas, em vestibulares de Mossoró, formou-se, enfim, agrônomo na Escola de Agronomia de Lavras, em Minas Gerais. Lá conheceu Oswaldo Lamartine, outro intelectual rio-grandense-do-norte, de quem se tornaria amigo. Nos tempos de Lavras, raspou o cabelo e deixou crescer a barba. Os colegas o apelidaram de “cara ingrata”. Tornou-se amigo pessoal, até, do diretor da escola. Eram tão íntimos que se chamavam de “burrão”.


Abdicava das noitadas para ajudar os amigos com dificuldades nos estudos. Foi essa cordialidade que, em meados de 1944, atraiu a bela mineira de olhos azuis com quem viria a se casar e com quem viveu o resto de seus dias. América Rosado interessou-se por Vingt-un quando o viu ajudar nos estudos uma de suas amigas, que ele nem sequer conhecia. O namoro evoluiu e rendeu, três anos depois, a prisão do soldado padioleiro 494 – que fugia do quartel para fazer a corte da jovem América. Por culpa dessas fugas de apaixonado, chegou a ficar 15 dias preso. Aproveitou a ociosidade da cela para estudar a obra do geólogo John Casper Brenner, estudioso americano fortemente ligado ao Brasil, que defendia a tese de que podia haver petróleo em Mossoró. Em bom “nordestinês”: Vingt-un não tirou mais essa idéia do quengo. E estava certo.


Cordial, amoroso, alegre, mas insistente, quando colocava uma coisa na cabeça, ninguém tirava. Seu segundo filho, Dix-Sept Sobrinho, se lembra das noites que o pai passou em claro lutando para despertar seu interesse pela matemática. Sua influência benéfica se disseminou pela família. O sobrinho Cid Augusto Rosado, por exemplo, tomou gosto pela leitura por causa do tio. “Aos 15 anos, ele me deu 15 livros de presente. Com medo dele, li todos e aí não parei mais.” Anos mais tarde, Vingt-un colocou na cabeça que o sobrinho devia se tornar conselheiro da Fundação José Augusto, órgão responsável pela política cultural do estado. Só havia um problema: Cid não queria ser conselheiro! Nem esse obstáculo levou Vingt-un a desistir da idéia. Sem que o sobrinho soubesse, o inscreveu como candidato ao cargo, fez sua campanha e conseguiu elegê-lo. Só depois do resultado, telefonou para Cid e deu a notícia. Tão teimoso quanto o tio, Cid respondeu que não iria assumir o cargo. E não assumiu. Pela primeira vez na história do Rio Grande do Norte, a governadora Wilma de Faria se viu obrigada a não empossar um conselheiro eleito da fundação.


Sua persistência era tão grande quanto sua ingenuidade. Levou muitos chás de cadeira, de ministros e de secretários de Cultura. A espera inútil o frustrava. Nem todos viam a cultura como ele, nem todos estavam interessados na difusão do conhecimento, nem todos eram “livrofílicos”. Mas Vingt-un, teimoso, não percebia isso. Triste porque quase ninguém freqüentava os lançamentos de seus livros, perguntava-se por que os acadêmicos da cidade não davam importância à cultura. Não conseguia entender que, diferentemente do que pensava, o mundo não se limitava à literatura. Por causa dessa fé, apadrinhava os funcionários da coleção, levava-os a trabalhar até altas horas da noite, lhes pagava sempre que podia e os ajudava em seus problemas pessoais. Mas nunca se preocupou com os direitos trabalhistas, com questões financeiras, com carga horária, com coisas efêmeras. Por causa disso, ainda hoje a coleção sofre com processos judiciais. E amarga, também, uma crônica falta de dinheiro.


Louco pela cultura, Vingt-un publicava tudo o que via e podia. Mais velho, quando a coleção passou para as mãos da Fundação Vingt-un Rosado, os sintomas da “livrofilia” se tornaram ainda mais intensos. Fez muitas dívidas com agiotas só para publicar livros de autores que nada vendiam. Participava de todos os lançamentos da editora e, loucura das loucuras, fazia questão de comprar os livros que ele mesmo publicava. Vingt-un dizia que era preciso incentivar os escritores. Incentivar a cultura em geral. Por isso também, era quase sempre visto na primeira fila dos eventos culturais da cidade. Sua loucura o levou a trabalhar 24 horas por dia. Não admitia que a coleção ficasse um só dia sem cuidar de um lançamento. Quando adoeceu gravemente e foi internado, os funcionários o apelidaram de “Fernandinho Beira-Mar”, porque, da UTI, continuava a comandar a casa.


O “livrofílico” era um sentimental que, estirado em sua rede, gostava de ouvir música clássica enquanto lia. Todas as gerações o interessavam: chorava nos enterros, mas também trocava cartas com os netos pequenos. Quando lia os versinhos que alguns netos escreviam, emocionava-se e tratava de publicá-los. Colecionava recortes de jornal com notícias sobre a família. Guardava-os junto com suas anotações pessoais, sempre em letras ilegíveis. Não raro, pedia ajuda a um amigo para traduzir o que ele mesmo escrevera. Seu descanso era viajar para a praia de Tibau com América e os filhos. Muitas vezes, não suportava o descanso e, às pressas, voltava a Mossoró para trabalhar. Os filhos até hoje se lembram, com carinho, de seu célebre banho (de mar?) das 17 horas. Um dos poucos momentos em que ele deixava tudo de lado.


Era pontual e não tolerava atrasos. A não ser da “velha”, como chamava carinhosamente dona América Rosado. Só ela podia se atrasar antes de saírem. Todas as manhãs, antes de sair de casa, beijava-a. Foram sempre namorados. Gostava de dizer que sua mulher era “a mais bonita da festa, de Mossoró, do Rio Grande do Norte e do planeta”. Não se preocupava com as roupas, e América fazia grande esforço para deixá-lo elegante. Teimoso, gostava muito de comer e sempre ia à cozinha roubar comidas que, por causa de sua doença cardíaca, estavam proibidas. Diz-se na família que, nas festas e nos eventos da cidade, ele se sentava sempre na primeira fila não para ouvir melhor, mas para ser o primeiro a pegar os salgadinhos.


Um de seus maiores sofrimentos aconteceu quando, nos anos 1970, seus irmãos Dix-Huit e Vingt Rosado romperam relações. Cada um foi para um lado, para um partido político. Vingt-un teve de escolher com quem ficaria e preferiu Vingt. O rompimento foi doloroso. Mais tarde, teve de enfrentar um processo judicial movido por Mário Rosado, um dos filhos de Dix-Huit, envolvendo litígios em uma empresa da família. Depois da perda do irmão Dix-Sept, esse processo e o desgaste familiar que a ele se seguiu foram as maiores tristeza de sua vida. Sofreu muito também com dores físicas provenientes do agravamento de sua doença cardíaca. Foram 15 anos vivendo entre o hospital e a coleção. Ele sentia muita dor.


Nunca foi de fazer pedidos, preferia resolver tudo por si mesmo. Nem esperava dos filhos o que não poderiam dar. Afinal, o “livrofílico” era ele. Antes de morrer, o último dos numerados manifestou um último desejo, romântico, literário, que não chegou a realizar: dançar uma valsa de despedida com dona América.



*Uma das últimas fotos de Dona América. Tirada por Zega em julho de 2008

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