Como Homens Podem Ser Cruéis

Eu fumava. Aspirava lentamente a fumaça tóxica e a sentia preenchendo os meus pulmões. Depois soltava o ar pela boca, lentamente. Ela estava sentada ao meu lado na calçada. Vestia um short curto, uma blusa vermelha com uma estampa da moda. Pernas à mostra, sapatilha baixa. A maquiagem leve, quase imperceptível. Estava muito bonita. O perfume que usava se misturava com o cheiro de cigarro. Nas costas, a tatuagem de uma borboleta colorida. O olhar era sério, frio. Os olhos miravam o vazio.


Ela não falava nada. Mergulhada em silêncio, estava pensativa. O semblante sério. Eu continuava fumando, sentindo todas aquelas substâncias tóxicas entrarem e saírem meu corpo. Bebia vez ou outra um gole de cerveja que estava ao meu lado. Ofereci, de novo, um cigarro. Ela nem olhou. Estava triste, decepcionada. Sentia que queria um abraço apertado, um carinho, uma conversa leve para acalmar o coração. Havia frieza, distância.


As mãos dela sempre juntas formavam uma espécie de circulo. Elas estavam sobre as pernas. A cabeça pesada, baixa. Unhas pintadas de verde, cor forte. Ao fundo, longe, as pessoas bebiam e ouviam alguma música estranha. Eu podia ceder ao perfume dela, àquela tristeza tão bonita e dizer-lhe as mais belas mentiras que eu sentia naquele momento. Diria que eu a amava e que superaríamos aquilo. Tudo não passava de um erro de percurso. Juntos, éramos fortes.


Eu podia assumir tudo ali, os riscos principalmente. Diria que nada importa, que foda-se a liberdade de ficar com quem quiser, que tudo era uma idiotice tremenda e que eu a amava, de verdade, apesar de nunca ter demonstrado isso. Eu sabia que mesmo fazendo cara feia, ela acreditaria. Havia um risco. O risco de tudo implodir. O risco inerente a todo relacionamento, à vivência a dois. O risco da decepção. Evitei as palavras que eu sentia que tinha que falar. Covardia. Estava paralisado. Fumava. Não sabia o que dizer.


- Por que você fez aquilo?


Silêncio. Eu não queria responder. Não quero as cobranças. Elas me sufocam.


- (...) Desculpa.


O olhar vazio modifica-se. Agora é a tristeza. Inunda os olhos. Vira-se. Ela não quer chorar na minha frente. Meu coração bate rápido. Por que não tenho coragem? Será que não é ela? Devia falar que a amo, porque sei que a amo. Mas tenho medo. De quê? Não quero mostrar fraqueza. Amor, sentimento, coração... Não sei, há a pressão, somos muito novos.


Tento quebrar o clima. Falo do cabelo dela, mais bonito pintado de ruivo. Digo que adoro o perfume e reparo no colar diferente que agora ela usa. Tento seduzi-la. Sorrio. Ela tenta se envolver. Mas a tristeza não lhe escapa os olhos. Esses olhos tristes são um peso para mim. Não consigo me livrar deles. De alguma forma, a dor dela pune a minha fraqueza. O que eu posso fazer? Prometer o que não posso dar? Assumir o que não posso assumir?


Ela me pede explicações. O ar agora é de ameaça. Diz que vai embora se eu não falar nada. Quer uma briga. Está violenta. A respiração dela é afobada. A tristeza saiu dos olhos, deu lugar a uma espécie de ódio. Sou o culpado por todo esse sofrimento, mereço o pior. Como se a tristeza dela não fosse o bastante para me atingir. Ela queria vingança. Provocação. Confronto.


Não, não caio nessa. Mando se acalmar. Se for para briga, eu é que saio, que vou embora. Isso não vai resolver nada. “Sente-se”, falo. Dou um abraço nela. Ela finge se afastar, depois relaxa nos meus braços. Ela encosta a cabeça no meu ombro. Sinto seu corpo tremer. Ela segura o choro e a tristeza dela rasga-me o peito. Aperto-a com mais força. O cheiro do perfume mistura-se com o do cigarro. Estamos juntos. Agarrados. Apertados.


Lembro do nosso sexo. De como ela não se entregava. Valente, brigava na cama, reagia, exigia seu prazer. Em outros momentos deixava-se ser dominada. Ela gostava desse jogo. Lembro do corpo dela estremecendo de prazer, dos olhos fechados e da boca semi aberta. Ela tinha medo dos gemidos, vergonha, mas não conseguia deixar de gemer. O corpo inteiro arrepiava-se no clímax. Eu tocava e sentia todos os seus pelos em pé, enquanto ela, inundada no próprio prazer, apenas fechava os olhos e respirava apressadamente. Era intenso.


Os filmes que vimos juntos, os planos que fizemos, os cafés que tomamos, os livros que trocamos. Foi tudo forte, envolvente. Ensaiei “eu te amos” para ela, procurava um momento para deixar escapar a frase. Não conseguia suportar o peso dessas palavras, o risco e tudo o que vinha com o amor. Tive medo. O sorriso dela tinha o poder de me hipnotizar. Era mais linda ainda quando sorria. Fazia tudo só para ter como o prêmio aquele apertar de olhos, aquela feição tão bela quando estava feliz. A tristeza dela era uma faca que cortava o meu peito. A covardia, nosso algoz.


Ela se recuperou. Disfarçou um sorriso. “Eu supero”. Meu coração ainda batia forte. Acendi outro cigarro e ofereci-lhe um. Ela aceitou. Enquanto fumávamos, a música do ambiente tornava-se mais alta. Falei para ela o quanto eu detestava lugares com muita gente, sou um antisocial. “Chato”, ela disse. Rimos. Foi o momento que tomei coragem. Veio instantânea. A coragem, a tão temida coragem. Senti naquele momento a clareza da situação. Um insight se apoderou de mim. Era o momento certo. Tinha que falar.


-  Acabou. Não dá mais.


Leia também "Como As Mulheres Podem Ser Cruéis".

3 comentários:

  1. Acontece exatamente desse jeito aí. Homem só valoriza quando come o pão que o diabo amassou.

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  2. Que horrível.

    O texto está muito bom! :)

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