O Possibilista: perfil de Marcelus Bobs


A recomendação era clara: a entrevista só seria possível caso houvesse cerveja. Sem álcool, nada feito. Marcelino William de Farias, 53, adota uma vasta cabeleira e uma aparência simples. Usava um casaco vermelho, folgado para o a largura do corpo magro, calça cinza larga e óculos escuros. De longe, parecia mais um cover de Raul Seixas depois de uma forte crise de pneumonia. Sorridente, inquieto, louco. Ele faz sempre questão de frisar: é um sujeito possibilista.

Marcelino é conhecido há mais de 30 anos como Marcelus Bobs, artista plástico da vanguarda contemporânea natalense. Pintor da boemia, da contracultura e dos humanóides encapuzados, ele se eternizou na cidade pela qualidade da sua obra e pela singularidade do caráter. Bobs parece ter estacionado ali em algum momento dos anos 70 ou 80. Cantarola Hendrix, Rolling Stones, e Raul Seixas quando a inspiração bate e sabe dizer as frases de efeito que todo repórter gosta. Emenda a entrevista com essa: “sou o profissional das cores”.

O brilho do jeito irreverente não conseguiu apagar os problemas familiares que passa. No bar do Pedrinho, antes mesmo de começar a entrevista, foi surpreendido por Nilza de Farias, mulher com quem vive há mais de 15 anos. Enfurecida, queria saber por que ele não tinha dormido em casa na noite anterior. Acusava-o de adultério. Exigia que ele pegasse as coisas e fosse embora de vez da vida dela. Bobs parecia atordoado com a ira da mulher.

Alegre, inquieto, irreverente. Há uma coisa que Marcelus Bobs não deixa passar e esconde no meio de toda a sua performance: a vida pessoal. A cena protagonizada pela mulher que, ao final, pediu desculpas à equipe de reportagem, é uma mostra disso. A família tem uma grande importância na vida de Marcelus e a mãe, Odete de Farias, quando citada desperta lágrimas. Ela foi importante para a carreira dele. “Sempre que você vê uma coisa linda dessas, registre. Faz bem à alma”, relembra, citando as palavras da mãe. Era 1967, 9 anos de idade. Ele e Odete viam a lua por detrás do barraco em que moravam.

Dos dias loucos de sexo, drogas e rock’n’roll da juventude setentista, trouxe a claustrofobia. Em uma noitada com outros artistas – os nomes ele preferiu que não fossem citados – do qual pouco se lembra, todos eles acabaram presos. Motivo: portavam maconha. A noite na cadeia foi insuportável e ali, com 20 e poucos anos descobriu-se claustrofóbico. A despeito dos convites, não entra em avião, não viaja como as suas obras fizeram. Tem medo. “Até entrar no chuveiro é uma dificuldade”, confessa.

O traço dos quadros que pinta contradiz com a aparência que adota. Há neles um forte senso estético, um quê de cuidado,perfeccionismo. O vocabulário que usa para falar de Van Gogh, Salvador Dalí, Piet Mondrian – principais influências – é um contraste com o tom geral de bagunça e de irreverência que faz questão de aparentar. Há espaço, na sua habitual inteligência, até para malhar do jornalismo. “Escreve aí: depois de 12 anos sem expor, o artista plástico Marcelus Bobs...”, tira onda.

Bobs calcula que já pintou mais de cinco mil quadros em 30 anos de carreira. Tem obras na Europa (Dinamarca, Alemanha) e em toda a América Latina. Foi escolhido em 2005 pela revista alemã de arte Neue Blätter como um dos 100 maiores artista de vanguarda do mundo. “Lets spend the night together”, cantarola o clássico dos Rolling Stones enquanto ouve a pergunta do repórter sobre o que acha de tudo isso. “Se eu fosse conhecido, teria muito dinheiro no bolso”, arremata.

Exposição

E foi sem dinheiro no bolso que abriu “Etiliconóide”, exposição de obras sobre boemia, feita em um dos principais redutos da cidade: o Bar do Pedrinho, no centro de Natal. Dez telas pequenas, que retratam violões e homens bebendo, com o traço característico de Marcelus. Qual a inspiração? “Não existe inspiração, recebo mensagens e retransmito para a raça humana”, diz e agora soa New Wave. Mas mensagens de quem Marcelus? “Sei lá, acho que de Deus”.

Corre pelo bar, inquieto, canta músicas e começa a falar sobre uma de suas paixões: o rock’n’roll. Bobs discorda de Raul Seixas quanto ao inventor do rock. Para ele, não foi o Satanás, mas Keith Richards, guitarrista do Rolling Stones, o inventor do ritmo. Ele inclusive alega que já esteve em uma noitada com o ídolo. Como foi? Você pode contar um pouco sobre o Keith? Marcelus silencia, adota um tom misterioso. “Você sabe que falar sobre ele é perigoso, não posso dizer nada”, desconversa.

O rock e a cultura hippie norteiam as obras. Além de pintor, Marcelus é (foi) músico da banda “Grupo Escolar” que, segundo ele, canta só composições próprias e sem influências. Marcelus interrompe a conversa e começa a cantar forró. Lembra-se de quando bebeu com Elino Julião, “uma figura magnânima”, mas foi um lapso antes de começar de novo a cantar “mosca na sopa” de Raul Seixas. “Não publique essa entrevista sem falar do Jimmy Hendrix.”

O terreno da música é fértil para o artista. No brainstorm que faz, lembra-se de Martinho da Vila. “Sou rockeiro, frise bem isso, mas meu cantor preferido é Martinho da Vila”. O sambista, segundo ele, canta a raça brasileira. Não, Marcelus não cantarola nenhuma música do sambista carioca. Seu setlist não sai de Raul. “Minha parição é com pincel e rock and roll’

Duas mulheres interrompem a entrevista. Querem saber quanto custa um quadro exposto na galeria do bar Pedro Colombo. Sem nenhum tino para o comércio, ele diz que não vai vender nenhuma obra em separado. Vende a coleção toda por R$ 1 mil. Elas desistem e vão embora. Marcelus parece não se importar. Sobre os doze anos sem expor individualmente, fala – ao seu modo - das dificuldades de ser artista, do custo para produzir uma obra. “Artista paga para trabalhar.”

Críticas? Elas ocorrem apenas por causa da “autenticidade”, como diz. De repente, faz careta, imita uma guitarra, começa a cantar outra música do seu extenso repertório. Agora, Deep Purple. Às perguntas mais espinhosas, fala pouco, foge e se permite mais de loucura e respostas nonsense. Marcelus Bobs tem um filho, Lenon Li, que batizou em um cartório onde foi quase impedido de entrar porque estava com uma cerveja. Li tem hoje 14 anos, é um “status quo” na pintura, como define o próprio pai, mas não quer ser artista plástico: estuda para se tornar biólogo marinho. “Artista que se preza não tem filho feio”.

Marcelus Bobs gosta das fotos. Faz pose, caretas, quer o tempo todo cliques da câmera “Artista plástico vive do que vê”. E completa dizendo que poderia fazer um quadro do repórter ali, ou da fotógrafa, e colocar-lhes o título de “O Jornalista”. Pergunto de Vicente Vittoriano. Marcelus responde que ele é um urbanóide e sente-se feliz ao saber que suas obras são analisadas no Departamento de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Em 2007, um vídeo seu fez sucesso na internet. Foi visto por milhares de pessoas. Era o discurso, depois de receber o prêmio de artista do ano concedido pelo Diário de Natal. Ele abre agradecendo a todos os possibilistas e emenda em uma série de reflexões aparentemente sem nexo.

O neologismo tem como significado: um sujeito aberto as possibilidades. A palavra é importante para ele.  O artista Assis Marinho é elogiado dessa forma “um louco possibilista”. De loucura e possibilidades Marcelus Bobs entende. Técnico em mineração. Funcionário público do Ibama na década de 80. Ele largou tudo para viver como artista da contracultura e se tornar o personagem que é. Um possibilista.

Matéria veiculada no Novo Jornal do dia 25 de maio.

Fotos por Anastácia Vaz

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