A matéria era no interior, em São José do Mipibu. Fui escalado para cobrir a prisão de um suposto estuprador, capturado recentemente pela polícia.
Entrei na delegacia e fui direto para a sala do delegado. O suspeito, algemado, estava lá. No rosto e por todo corpo, marcas claras de espancamento. O delegado, orgulhoso, contou como foi a operação para prender o homem.
O acusado, ao ouvir o delegado, negou. Foi repreendido em voz alta. O policial continuou sua história. Quando falou de novo que era ele o acusado de estuprar meninas na cidade, o acusado negou novamente.
Diante da segunda negação, o delegado ameaçou. Disse que se ele continuasse a negar, voltava para a sala onde estava. Deu a entender que continuaria a ser espancado.
Antes de ser preso, o homem era vendedor de balas. Tinha família e filhos.
Isso ocorreu em 2010. Eu tinha acabado de ser contratado pelo jornal. Me vi diante de um caso claro de tortura, na minha frente. E eu não tinha, ali, como fazer nada.
Na volta, conversava com o fotógrafo e o motorista. Ambos aprovaram a atitude do delegado. Só eu que via ali um abuso de poder por parte do policial. O fotógrafo, experiente em cobertura policial, me falou que era normal isso acontecer.
O fotógrafo me contou até do termo que usam aqui para se referir a tortura dos presos: "fulano de tal levou uma queda". A "queda" explicava o fato de eles aparecerem cheios de hematomas.
Senti uma vontade de relatar isso na matéria, no pouco espaço que tinha para escrever sobre o caso. Mas, muito pela inexperiência, não tive coragem. Me sinto mau por isso até hoje.
Lembrei dessa história ao ler um artigo da Eliane Brum sobre as podres relações entre a imprensa policial e a polícia. E também sobre o quanto nós, da mídia, seja por medo de represálias, seja para manter as fontes, seja por achar que "as coisas são assim mesmo", acabamos contribuindo para que violações de direitos fundamentais sejam cometidas diariamente no Brasil.
Parece que neste país existe uma forma velada de barbárie, cometida com o aval de parte da população - que vê, ingenuamente, na violência uma forma de combater a própria violência - e esquecida pelos meios de comunicação.
Torturas, espancamentos e até mortes de seres humanos que, sequer, tiveram chances de defesa são tolerados. E engraçado que a maioria desses presos são frutos direto da corrupção do poder público, da educação defasada que existe no Brasil e desse abismo que separa pobres (que, neste país, não têm direito a nada) dos ricos.
O pior é que essa forma de tratar as coisas com tortura é aceita e até "comemorada" por muita gente. O que explica a alta audiência dos programas sensacionalistas e estupidez diversas, como foi a tag #CoronelArrochado inventado por um blog local para "comemorar" a morte de um bandido.
E no final temos isso. Uma repórter loira humilhando um pobre e negro, ao vivo, em seu programa de TV.
As pessoas deste país precisam muito de mudar.
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